Não é possível que este seja eu, dizia enquanto olhava uma foto sua, ainda bebê, pendurada na parede da casa de sua mãe. Taí uma coisa esquisita, eu não me reconheço com essa cara, esse cabelo, olhos, boca, nariz, sorriso. Esse da foto é outra pessoa que dizem ser eu. Não me lembro de ser assim.
Sabia que pra gente se reconhecer como pessoa era preciso um mínimo de uniformidade, permanência. Talvez a culpa era do excesso de farinha láctea... Achava impossível reconhecer-se como ele mesmo se as características com as quais havia se apegado estavam acabando. Durante toda a minha vida tive o cabelo enrolado, agora tá ficando liso. Comecei um namoro moreno e acabei grisalho. Assim fica difícil.
Ainda mais engraçado era perceber o quanto tinha raiva de certos comportamentos que possuía quando jovem. Numa fita de vídeo gravada em uma viagem para algum lugar, com a família, numa fotografia, mostrava-se sorridente, soltava risadas bobas sobre coisas sem graça, ria para o nada. Era detestável. Hoje sobravam motivos pra não rir. Obsessivo, parecia às vezes uma cria de Georges Bataille.
Os bebês são as melhores propagandas que a vida pode ter. São felizes, comem e dormem. Só que eles mesmos não têm consciência disso, e quando crescem caem direto na banheira de água fria. Morria de medo da chuva por causa dos aparelhos que queimaram na sua casa, quando criança. Agora necessitava da chuva pra se sentir gente, pra respirar um ar diferente, é como se o céu conversasse com a terra por alguns instantes.
Voltando à casa onde nasceu achou tudo muito pequeno, espremido. Não era possível que tinha vivido lá por tantos anos. Agora quase batia a cabeça no chuveiro, ocupava todo o sofá, colocava os pés no chão, dobrava as pernas. Crescer é virar um E.T., alguém desconhecido pra nós mesmos. Sabia que pensava diferente sobre tornar-se adulto, quando era pequeno. O corpo não acompanha a mente, e se perguntava até onde vai a evolução humana.
Tinha certeza de que daqui a uns anos o dedo mindinho não existiria mais, adorava falar isso pros colegas. Até o dedinho é transitório, que PORRA é essa? Sempre se lembrava de Jostein Gaarder e da poeira estelar. E comentava que o homem é só mais uma raça de animal que habita a Terra, se continuar a se desenvolver dessa forma muda de espécie ou desaparece de vez, toda vez que ouvia falar em prolongamento da vida, sistema de saúde pública, pirâmide etária.
Ser influente é a única maneira de se tornar eterno, só não sabia como se tornar um. Quem sabe expondo minhas ideias eu alcance a fama, possa me tornar um ícone? A perda da memória era o mal do século, alguém sem memória é ninguém. Computador sem memória não serve. A gente se alimenta da nossa própria história.

