9.2.10

mais uma porção

Ele nunca foi muito chegado a verduras e legumes. Verde, no máximo, só alface. Odiava jiló. Não entendia como seus amigos bêbados comiam jiló assado na “chapa”, enchendo a cara de cerveja e pinga no Mercado Central ou em qualquer buteco da cidade. Certo dia, ao ver um casal de gays (ou ao menos o que parecia ser um casal, pois os dois não estavam de mãos dadas) passeando pelo shopping pensou consigo: que coisa horrorosa, dois homens juntos.

Voltando ao bar com os amigos, surgiu a oportunidade de contar o que havia visto, assim daquele jeito como se fosse a maior aberração da natureza. A maioria dos amigos concordou com ele e riu, muitos deles eram casados com mulher e já passavam dos 40. A probabilidade de alguém dessa faixa de idade, naquela situação, pensar diferente do grupo ainda era pequena, e isso seria visto como algo também estranho. Então o jeito era concordar com os outros e fim de papo, risos e gargalhadas garantidas

O único solteiro era ele. Já tinha namorado várias mulheres, mas todas o achavam exigente demais, crítico demais, chato demais. Diziam: você é um infeliz e não se deu conta disso. Pra ele, tava tudo ótimo.

Por motivos profissionais, teve de se afastar de seus amigos por indefinidos anos, sem previsão de volta. Quando der eu retorno. E sozinho numa cidade do interior, descobriu algo improvável a seu respeito: era gay. Sua solidão naquele lugar permitiu que assim o fizesse. Caiu a ficha. Lembrou que nos anos anteriores, algumas raras vezes já tinha tido sonhos um pouco diferentes, mas fazia questão de esquecer esses detalhes e viver na famigerada zona de conforto.

Permitiu-se conhecer outro carinha na cidade em que estava. Nos primeiros dias, era uma mistura de felicidade, estranhamento, satisfação e encantamento. Nunca havia se visto companheiro de outro homem. E quando foi ao bar próximo a sua casa, pela primeira vez com o seu namorado, aquele quase desconhecido pediu uma porção de jiló assado para os dois. Olhando pro outro, disse pode ser? E ele, claro, ótima escolha.

Provaram o jiló. Estava ótimo, os dois concordaram. E confessou: nunca gostei disso, é a primeira vez que estou comendo. Seu namorado não acreditou. Riram. E agora quase toda semana o casal de namoradinhos passava no bar da esquina pra comer aquele prato. E viveram felizes para sempre, na mais improvável das situações.

Moral da história:

preconceito é igual jiló: muita gente adora falar mal sem nem conhecer, só porque outras pessoas vêm fazendo isso há anos e anos e anos e anos e anos.