29.1.10

decifrando yukio mishima


Poucos escritores são tão interessantes como o japonês Yukio Mishima. Obcecado por temas como beleza, juventude, prazer e morte, apresenta em seus livros histórias de pessoas aparentemente comuns, mas cujos desejos extrapolam as convenções. Ao ler seus livros você percebe o quanto o ser humano pode ser perverso com os outros, e consigo mesmo, muitas vezes em busca de prazer e satisfação pessoal.

Cores Proibidas, publicado originalmente em 1950, é absoluta e espantosamente atual. Na obra, um escritor já idoso – Shunsuke – conhece um rapaz de vinte e poucos anos – Yuichi –, incrivelmente belo e ávido pela vida, mas que se vê ‘forçado’ a contrair matrimônio com a jovem Yasuko, baseando-se num sinistro pacto realizado entre o escritor e o jovem.

Shunsuke torna-se preceptor moral de Yuichi:

Descobri algo fantástico, anotou Shunsuke em seu diário. Nunca poderia imaginar que encontraria marionete viva tão perfeita! Yuichi é realmente lindo. E não é apenas isso. É também moralmente frígido. Não possui o remédio da introspecção, que imprime a qualquer jovem certo ar de religiosidade. Também não assume a menor responsabilidade por seus atos. Resumindo, a moral daquele jovem consiste numa certa indolência. No momento em que começa a fazer algo, a moral torna-se desnecessária. Esse jovem se consome como material radioativo. Yuichi não acredita nem um pouco nas angústias modernas.

Antes mesmo de seu casamento, Yuichi tem ciência de seu desejo por homens, mas mostra-se disposto a sacrificá-lo, incentivado pelo pacto feito com o Shunsuke que poderia lhe oferecer recompensas futuras. É claro que essa situação não se mantém por muito tempo. A lenta “corrupção” de Yuichi, seu desejo e curiosidade latentes pelo mundo desconhecido, corresponde em grande parte ao processo de aceitação de si próprio que os gays tão bem conhecem, e pelo qual muitos deles nunca passaram. É clássico o momento em que Yuichi conhece outros de sua “espécie” no parque da cidade, à noite:
Todos os rostos voltaram-se ao mesmo tempo para o do jovem. Nesse instante, muitos olhos brilharam, muitos outros deixavam transparecer ciúme. O lindo jovem tremeu de medo, sentindo que o rasgavam em pedaços. Hesitou. Entretanto, havia certa ordem nos movimentos dos homens. Era como se uma força controladora restringisse seus movimentos, impedindo-os de ultrapassar uma velocidade preestabelecida. Yuichi deixou o banheiro pela saída lateral e foi se refugiar atrás de uma moita do parque. Percebeu então, aqui e ali, o brilho de pontas de cigarros.

Os casais de namorados que à tarde e antes do entardecer passeavam de braços dados pelos estreitos caminhos nem em sonho poderiam imaginar que horas depois aqueles mesmos caminhos seriam usados para um fim completamente diferente. O parque mudava de fisionomia. A metade estranha desse rosto, coberta durante o dia, revelava-se então. Como o ato final de uma peça shakespeariana, no qual um banquete de homens é transformado à meia-noite em um banquete de espíritos, o mirante onde os namorados costumam sentar de dia para conversar inocentemente passa a se chamar à noite “arena”. Os policiais responsáveis pelo local simplesmente não interferem, por não existir nenhuma lei reguladora dessas práticas.




Certamente angustiado como Shunsuke, Mishima encarava a beleza como um caminho para a libertação moral e rebeldia social. Não é à toa que o velho Shunsuke é descrito como um homem horroroso e moralmente arruinado, enquanto Yuichi possui o frescor, a beleza e a aprovação que somente os jovens possuem diante de certas situações. Yuichi sente-se cada vez mais à vontade com sua sexualidade; apesar de não demonstrá-la em todos os momentos, não tem vergonha de andar agarrado com outros homens na rua e sua esposa não lhe pergunta onde estava na noite passada.

Por se tratar de uma obra que por vezes expõe o lado misógino do autor, muita polêmica foi criada em torno de Cores Proibidas. Para os protagonistas, por exemplo, as mulheres não passam de um pedaço de lenha a ser queimado, seres que não possuem sequer sentimentos e desejos. Nada muito politicamente correto.

Mishima sempre foi um homem obcecado pela beleza, talvez por não se sentir tão belo como queria. Uma pena. Ou não. Interpretou gangsters em filmes, posava para fotos de sunga e exibindo seus músculos, em seu casamento arranjado exigiu que sua noiva fosse menor que ele. Seu ideal de beleza e força era aquele apresentado nas esculturas gregas. Copiava obras de arte na maior cara de pau. A mais famosa delas é a sua versão de São Sebastião, originalmente pintado por Guido Reni. Na tela, o corpo do santo aparece amarrado a uma árvore e atingido por flechas. Mishima inclusive a descreve em Confissões de Uma Máscara. O protagonista tem sua primeira ejaculação após olhar a pintura em um livro:

Abri a página no final do livro. De um canto, surgiu então uma pintura que senti estar lá só por minha causa, me esperando: não conseguia pensar em outra explicação. Era uma reprodução do São Sebastião de Guido Reni, do acervo do Palazzo Rosso de Gênova.
 Sua cruz era um tronco negro e algo inclinado na árvore, tendo ao fundo uma floresta sombria e, ao longe, um céu acinzentado de fim de tarde, ao estilo de Ticiano. Um jovem de beleza excepcional estava ali amarrado, nu. Suas mãos encontravam-se cruzadas no alto, e os punhos, presos à arvore por cordas. Não se viam outros nós a atá-lo, apenas um grosseiro pano branco pendia frouxamente em torno da cintura, cobrindo sua nudez.


[...]


Naquele dia, ao olhar para a pintura, todo o meu ser estremeceu, movido por certa alegria pagã. O sangue disparou, meu órgão ficou da cor da fúria. Aquela parte de mim que crescera, que parecia prestes a explodir, aguardava com ansiedade inaudita que eu tomasse alguma providência; repreendendo-me por minha ignorância, ofegava enraivecida. Inconscientemente, minhas mãos começaram a fazer movimentos que ninguém jamais lhes havia ensinado. Senti que algo oculto e radiante subia dentro de mim a passos alados, pronto para o ataque. E enquanto eu devaneava, jorrou, trazendo consigo uma embriaguez estonteante...


Yukio Mishima tornou-se um de seus personagens no fim de sua vida. Cometeu suicídio ritual – harakiri – aos 45 anos devido a insatisfações políticas, e segundo seus amigos havia preparado aquele ritual meses antes. Confirma essa suposição sua amiga (transex?) que aparece no trecho do documentário Mishima and Bodybuilding, ao afirmar que o autor praticava halterofilismo com o objetivo de tornar seu corpo mais belo para o aguardado momento.

Ídolo, fascista, incompreendido, exibicionista, narcisista: Yukio Mishima é, no mínimo, intrigante.